segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Obra de Clarice Lispector traz novo olhar sobre o Brasil das décadas de 1950 e 60



As personagens e histórias dos contos de Laços de Família, de Clarice Lispector, dizem muito sobre as contradições da sociedade brasileira da época em que o livro foi escrito. A dissertação Linguagem e melancolia em "Laços de Família": histórias feitas de muitas histórias, defendida pelo pesquisador Moacyr Vergara de Godoy Moreira na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP em agosto de 2007, buscou justamente contribuir para o entendimento do período (décadas de 1950 e 1960) por meio de uma abordagem sociológica desta literatura.

“Parte da historiografia coloca o Brasil dos anos 1950 e 1960 como um país progressista. Quando olhamos para os conflitos expostos na obra de Clarice Lispector vemos que não é bem assim”, explica o pesquisador. Moreira recorreu ao texto literário para acessar um conteúdo que nem sempre outras disciplinas encontram e viu vir à tona um País permeado por elementos de patriarcalismo, opressão da mulher, racismo e preconceito social. Tais elementos se situam em termos contraditórios ao desenvolvimentismo econômico e à liberalização pelos quais o período é conhecido por muitos.

Como exemplo do conservadorismo, destaca um trecho do conto A imitação da rosa:

“Seu rosto tinha uma graça doméstica, os cabelos eram presos com grampos atrás das orelhas grandes e pálidas. Os olhos marrons, os cabelos marrons, a pele morena e suave, tudo dava a seu rosto já não muito moço um ar modesto de mulher. Por acaso alguém veria, naquela mínima ponta de surpresa que havia no fundo de seus olhos, alguém veria nesse mínimo ponto ofendido a falta dos filhos que ela nunca tivera?”.

Moreira explica que “há, aqui, uma crítica a um elemento da sociedade patriarcal, que é ver a mulher como meramente um ser reprodutor, responsável por dar herdeiros ao marido, além de cuidar dos afazeres do lar”.

E para exemplificar a crítica ao racismo, cita um trecho do conto A menor mulher do mundo:

“Entre mosquitos e árvores mornas de umidade, entre as folhas ricas do verde mais preguiçoso, Marcel Pretre defrontou-se com uma mulher de quarenta e cinco centímetros, madura, negra, calada. ‘Escura como um macaco’ (...) – A senhora já pensou, mamãe, de que tamanho será o nenezinho dela? - disse ardente a filha mais velha de treze anos. O pai mexeu-se atrás do sofá. – Deve ser o bebê preto menor do mundo - respondeu a mãe, derretendo-se de gosto. – Imagine só ela servindo a mesa aqui em casa! E de barriguinha grande!”.

“Encontramos também personagens que passam por situações inusitadas, mas que voltam sempre à mesma situação de opressão – aspecto sobre o qual podemos fazer uma analogia com a história do Brasil, país que passa por sucessivos ‘traumas’ (exploração colonial, escravidão, ditadura Vargas e Regime Militar) – conceito de Renato Janine Ribeiro – mas não apresenta uma força de mudança suficiente para alterar as estruturas".

O enfoque escolhido por Moreira para estudar Clarice Lispector, por meio da sociologia da literatura, ainda não é tão comum quanto outras linhas usadas na reflexão sobre os textos da escritora. ”Nas décadas de 70 a 80 tivemos um predomínio da abordagem feminista, seguida do recurso à psicanálise nas décadas de 80 a 90. A partir dos anos 90, começamos a encontrar trabalhos que privilegiam a visão da literatura de Clarice como uma interface de crítica à sociedade da época”, explica.

Ele ressalta também a importância de a academia reconhecer os múltiplos valores da obra de Clarice Lispector, ainda vista com ressalvas por parte dos teóricos mais conservadores. “Alguns estudiosos com os quais conversei estranharam a minha opção pela Clarice Lispector para trabalhar com esta temática. Numa destas ocasiões, li um trecho de Laços de Família em voz alta e percebi que a pessoa ficou surpresa com o conteúdo – o que demonstra claramente que grande parte desta resistência à escritora provém de preconceito, de idéias não amparadas num conhecimento da obra dela, e também de machismo, com a crítica de que seus livros não passariam de ‘caderninhos de mulherzinha’ ”, conta o pesquisador.

Uma linguagem estranha

Além dos aspectos sociológicos, a dissertação buscou uma reflexão estética sobre a linguagem utilizada pela autora. Erroneamente considerada por muitos uma escritora ‘ilegível’ por adotar o fluxo de pensamento em seus textos, Clarice Lispector escreveu muitas obras ligadas a temas do cotidiano mais concreto, como é o caso do livro estudado.

Mesmo assim, o leitor se depara com frases que geram algum estranhamento. Mas o incômodo provocado é proposital, como explica o pesquisador: “Segundo o filósofo Theodor Adorno, toda vez que uma obra de arte rompe com a expectativa causa um estranhamento em quem a aprecia. Para ele, tal incômodo é a única forma possível de tirar as pessoas da reificação (perda do seu caráter humano, transformação em ‘coisa’), fazendo-as refletir e criticar sua própria maneira de viver”.

Mais informações: Moacyr Moreira, e-mail moreiramoa@hotmail.com. Pesquisa orientada pelo professor Jaime Ginzburg.